terça-feira, 12 de abril de 2016

Caderno das oportunidades perdidas

Às vezes é preciso pegar um desses cadernos velhos que você comprou para aquele curso de francês ou espanhol que nunca fez e começar a preencher com todas as frases que você deveria ter dito. Coloque também o para quem você deveria ter dito e por quê. Coloca lá os "pare com essa porra" que ficaram engasgados bem do lado dos "eu te amo" atrasados. Coloca seus exageros que disseram pouco da mensagem que queriam ter dito. E também as pequenices que gritaram e não foram ouvidas. Não pare aí! Coloque gestos. Aquele abraço no meio da rua que você ficou tímido de dar naquela pessoa que significava demais e nem ficou sabendo. Aquele café que você queria convidar aquela pessoa legal para tomar com você, aquela viagem maluca que você planejou tanto pra trocar por outra coisa, ou aquela coisa que apareceu e mesmo sendo a maior viagem, não terminou como você queria. E não terminar como você queria não significa não terminar como não deveria. Se você olhar bem para essa lista - que talvez agora esteja já bem grande - vai perceber que além dos cheiros e gostos e sons que trançaram o véu do que está passado, tem um tutorial gigante de vida interna te pulsando para não deixar passar. Ou para passar com gosto, com requinte, com aprendizado, com criatividade, existem tantos outros novos erros a se cometer quantos grãos de água na areia do mar. E será que não é por lá, na areia, que você poderia deixar esse caderno? 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Cratofilia* digital

Porque toda relação precisa ter uma vítima e um algoz.
Porque toda relação só pode ser analisada pelo viés do poder e do controle. Não existe pai e mãe. Não existe amigo e amigo ou amiga e amigo ou amiga e amiga. Não existe professor e aluno, nem colega e colega. Avó e neto, avô e neta. Só vítima e algoz. Acabou. Não insista.
Porque é impossível que qualquer vida ou relação pessoal e privada no planeta prescinda do meu julgamento moral sobre ela.
Porque para julgar é preciso se colocar num patamar superior e eu, infalível porque identificado com a persona sorridente e indefectível do meu facebook, estou aqui como supra sumo moral da humanidade para iluminar e levar a (minha) Palavra aos pobres de espírito.
Porque o meu ponto de vista é o único sempre foi o único e sempre será o único.
Porque eu generalizo grupos que me generalizam e acredito, de verdade, que estou lutando contra o "preconceito".
Porque é fácil apontar o dedo.
Porque a ironia nos salvará. Ou não.
RK

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Memórias

É um tanto inusitado que, arrumando a casa na madrugada, você encontre pela primeira vez um CD feito por uma ex namorada, em 2007, com o título "I don´t know what to say, i´m sorry", com a data do dia em que ela foi embora da sua casa e da sua vida.
As músicas são de época, os sentimentos estão onde deveriam estar, no passado. Mas algumas questões badalam os sinos internos, a gente mergulha não no que era nem no que passou, mas no que deveria ter passado e se insinua no futuro. Não o sentimento personalizado, mas o padrão que como asas negras se insinua inconveniente sobre os envolvimentos mais recentes, sobre o que se foi, o que se é e o que disso tudo nos tornamos. Regurgitar emoções é necessário, papear com amigos, pingar a cara do sentimento desperdiçado, rir das tempestades e aceitar novos ventos. Tudo é um pouco limpeza, um pouco o artesanato arterial das escolhas, dos sacrifícios, num campo onde até o momento nada foi sacro nem fixo.
Vivemos mesmo esperando por dias melhores, maybe it´s just a little too late anyway, se a gente não fizesse tudo tão depressa, se não vivesse tudo tão depressa, mas o que me importa o seu carinho agora? Dont fight, dont argue, give me the chance to say that i am sorry. There´s something about the way you look tonight, killing me softly with this song. After all, i´ll give up forever to touch you ´cause i know that you feel me somehow. And she´s buying a starway to heaven. It makes me wonder... tomorrow it´s gona be too late. Wanna feel stronger, and love you longer. Please forgive me, i know now what i do. Things go on and on, baby when you´re gone. In the name of love, with or without you.
Viver. Acima e além de tudo. Viver. De novo e sempre e outra vez e eternamente. E outra manhã, e outro soco, e outro treino, e outro texto, amor, espera, olhar, outras páginas, outras almas e bocas e coxas, novos enamoramentos, desejos, trapaças, desesperos, chuvas de novos desmames, e viagens e cinemas e jantares, ainda outro e outro desejo para flambar sua alma na cama e não ser nada daquilo que prometia e ser tudo o que você precisava ver. E viver. Por hora.
E no meio de tanta gente, esperei você. Entre tanta gente chata sem nenhuma graça... seja eu, seja eu, deixa que eu seja eu, e aceita o que seja seu, então deita e aceita eu. Receba o que seja seu. Beija eu, beija eu me beija. Molha eu, seca eu, deixa que eu seja o céu e receba o que seja seu...
Anoiteça e amanheça eu, afinal, é impossível ser feliz sozinho.

Adiamentos

São tantos desafios simultâneos atropelando nossa atenção, nossos projetos e desejos que se afoga a vontade que não saiba debater-se em nado, para fora do nada, do vácuo aquoso da avalanche das circunstâncias. Vontade é chave e fechadura, tranca e rodopio, abertura e esperança. É um alvo pulsante, uma certa inquietação cardíaca das catacumbas daquele silêncio intestinal que evitamos ao longo do incêndio a que chamamos vida enquanto nos hipnotiza a chama que nos asfixia. A certeza de novos agoras, de novos hojes, de um amanhã aprazível em que possamos adormecer nossos sonhos cauteriza a ferida da vida adiada, do potencial atrasado, do futuro espremido entre os dias cada vez menores. Enganamos nossa esperança e com ela se esvai aquela energia primal, ardente e ritmada da cadência sanguínea, do fluxo do que devemos ser. O maior pecado é o adiar-se a si mesmo.

Renato Kress

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

TretaBoísmo

Ideias sobre as quais temos total liberdade de mudar de opinião no futuro:
1. Só entre em boas tretas.
2. Lute pelo que acredita, não por tudo o tempo todo. Isso é idiota, te cansa e te enfraquece.
3. Tempo e energia são recursos limitados: não desperdiçarás!
4. Escolha suas batalhas. Viva seus descansos.
5. Espere o melhor, prepare-se para o pior e aprenda com o que chegar.
6. Todo excesso é patológico. Deboas demais te entrega um AVC, Tretas demais dão ataque cardíaco.
7. Só a pessoa que mora no seu espelho pode dizer o que você é e o que você deve ou pode. Se não foi essa pessoa que falou, amorosamente ignore.
8. Pense sempre antes: Vale a pena? Se sim, sim. Se não, não. Soque ou abrace forte.
9. Revolte-se quando for necessário. Não tolere injustiças. A ninguém.
10. Trate como gostaria de ser tratado. Se não for possível caia fora. Na dúvida, ame.
11. Quem você acha que é para julgar quem quer que seja? Julgue-se e tome conta da sua vida. Contente-se em ter autoridade sobre você. Já é suficiente.


quarta-feira, 20 de maio de 2015

Inesperado

Eles querem que você odeie crianças. Querem que não critique seu abandono. Que aceite e naturalize a menos-valia do pobre e do negro. Querem te sensibilizar e irritar, criando um senso de identidade que te segrega do resto do mundo. Que crie um nós artificial e nele se enforque. Eles querem privatizar as cadeias, gerar mão de obra escrava, terceirizar os direitos trabalhistas e privatizar o amor. Querem que não pense e que, por não pensar, se sinta irritado e tenso quando a vida te forçar a ver mais do que as respostas patrocinadas. Eles te darão chavões e palavras de ordem para te livrar do árido trabalho de pensar por si só. E se você for acomodado e covarde o suficiente, vai mergulhar na esquizofrenia dos nós que segregam, dos nós que delimitam e que criam sempre uma camada de vidas válidas e um estrato biológico de subvidas negras e pobres, desimportantes. Eles querem que você esqueça que essas vidas pulsam desejo e amor como você, que essas vidas pulsam aceitação, olhar, vida. E se você se distanciar o suficiente, no seu quadradinho de cimento, atrás do vidro, da grade, da versão oficial dos fatos - aquela contada por quem lucra com a visão oficial das fraturas - você será o cidadão padrão: agressivo, competitivo, pró-ativo, reativo, instintivo, projetando toda sua carência existencial, afetiva, intelectual e social em consumo. Você será uma ilha. Não a ilha da bem-aventurança que te venderam no comercial sorridente, mas a ilha do medo, da ansiedade, do antidepressivo, da tensão constante, da desistência de si mesmo. Eles querem que você suporte tudo sem dar um pio. Reclamações são sinal de "imaturidade" e falta de "resiliência". Invertem a lógica da vida. Para eles quem tem forças para lutar não é "resiliente" o suficiente, ainda não desistiu completamente. Eles querem que você acredite que se ainda não desistiu, você ainda é infantil. Logo eles, que querem transformar todos os anseios humanos, toda a riqueza das nossas almas e experiências em consumo, eles que nos vendem a certeza (pueril) de que sem desistência não dá pra ser feliz. Sinceramente? Quer mesmo irritá-los? Seja o inesperado.

Vaidade

- Você é vaidoso, não?
> Sim, as pessoas tem características e essa é uma minha. Perceber ela te envaidece de que maneira mesmo?

Renato Kress